quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

POR QUE LER “MEMORIAL DO CONVENTO”, José Saramago?


       A ficção de Saramago, socialista convicto, é produzida sob a ótica dos fracos, dos marginalizados e humilhados. Conheça sua explicação sobre o que o levou a escrever Memorial do Convento: “A construção do convento de Mafra foi uma demonstração, entre outras, da megalomania de João V, graças à exploração do ouro e de diamantes do Brasil. Ali foi enterrada uma fortuna incalculável. Mas é impossível apurar quanto, porque todos os documentos foram destruídos. Pois bem, sendo eu um homem de esquerda, com um pensamento marxista, não poderia deixar de me impressionar com o fato de 40 mil homens terem construído aquela obra”, José Saramago.
      O romance está dividido em 25 capítulos, sem numeração alguma, marcada por espaços vazios entre o final de um e o início de outro. A obra representa uma investida no campo da narrativa histórica. Depois de demoradas pesquisas que levaram cerca de quase 30 anos, Saramago investiga quase 50 anos da História de seu país nos limites dos séculos XVII e XVIII, com um sem fôlego de informações que são justapostas rapidamente, sem interrupção como se houvesse uma impulsão que transformasse pensamentos em palavras.
      O próprio Saramago revela em entrevistas que Fernando Pessoa, Franz Kafka e Jorge Luís Borges são influências mais do que claras em sua obra. Dentre os vários aspectos de sua obra destaco:

k O autor problematiza o ato de escrever (metalinguagem), observa a história com um distanciamento do discurso oficial e combina ensaio e romance, implodindo as fronteiras entre ficção e não-ficção;
k A intertextualidade, a paródia, a colagem, valorização da ironia, questionamento da religião e de outros sistemas que criam relações de poder;
k Diversidade de tons: do lírico ao irônico, do coloquial ao pomposo;
k Faz uso de informações oficiais e as mistura com fontes oficiosas, sem abrir mão da sua capacidade imaginativa, isto é, substituir o que foi pelo que poderia ter sido, afirma o autor.
      “Ele constrói uma história do que poderia ter sido, dando voz a pessoas anônimas, sujeitos comuns, que podem ter existido, que fizeram de nós o povo que somos. Com isso, Saramago presta uma homenagem aos heróis anônimos”, diz a professora Ana Paula Arnaut, da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Entendo que o seu objetivo nessa fase de romances históricos não é reconstituir o passado, e sim desconstruí-lo, subvertê-lo.
      “Memorial do Convento” configura categorias narrativas de tempo, espaço, personagens e ações, num processo de intertextualidade entre fatos narrados pela História. Mas, no universo ficcional, o estatuto de fato, tempo, espaço e seres reais é subvertido. O tempo faz-se atemporal, os espaços perdem fronteiras, e as personagens assumem a pluralidade das faces da condição humana. Então, a intertextualidade, o diálogo entre História e Literatura torna-se linguagem enunciadora de um dizer que transfigure o tempo histórico num tempo não-linear, realizando a simultaneidade passado-presente-futuro, dando, ao fato histórico, não apenas o sentido de documento, mas acrescentando-lhe um olhar e um dizer reflexivos sobre as ações humanas.
      O narrador mostra que a verdade não está naquilo colocado e imposto pelos poderosos, reis, príncipes e igreja, mas pode estar entre os humildes, os de coração puro, livres, conscientes. Saramago produziu um romance para reflexão, perspectivando o mundo através de todo o povo, que faz parte do cenário, mesmo trabalhando como esquecidos da história.
      Por que ler Memorial do Convento? Porque era uma vez um rei que fez a promessa de levantar um convento em Mafra. Porque era uma vez a gente que construiu esse convento. Porque era uma vez um soldado maneta e uma mulher que tinha poderes. Porque era uma vez um padre que queria voar e morreu doido. Por quê? Por que era uma vez...

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